era dezoito de maio, estava marcado na minha agenda desde que soube que seria o início das vendas. meio-dia. chegou a hora. cliquei no link.
aguardei por umas duas horas naquela fila imaginária. não achei que demoraria tanto. eu tinha compromisso fora, levei o computador junto para não fechar a aba e perder meu lugar naquela fila.
chegou a minha vez.
escolhi os lugares. seriam dois. um pra mim e outro pra quem me ensinou a amá-lo.
comprei.
respirei aliviada.
minha mãe faz aniversário em maio, próximo ao dia das mães, lembro de ir ao centro da cidade nos anos 2000, para escolher seu presente, era uma loja de cds no calçadão do centro, entrei e não tive dúvidas: “nos bailes da vida” do milton foi a escolha. naquela época eu não sabia de muita coisa, mas já sabia que ela o amava, eu ainda não entendia muito o que bituca cantava, mas sabia que era um ótimo presente.
e agora, iria ver a última sessão de música do bituca com minha mãe.
o dia chegou, após um almoço delicioso no baru, uma exposição lindíssima do walter firmo no ims, fomos pro hotel descolado nos arrumar para o grande encontro.
chegamos na casa de shows cedo, tiramos algumas fotos clichês, procuramos nossos lugares, nos sentamos.
eu estava ansiosa, extasiada, feliz.
zé ibarra abriu o show, ele e o violão.
parecia preencher todo espaço com sua voz e presença.
pensei “como o contexto transforma, não o via assim na bala desejo”, não com juízo de valor positivo ou negativo, mas como ocupar aquele palco, como essa turnê o faz grande.
era chegada a hora, o vídeo de abertura me arrancou lágrimas de soluçar, senti minha pele arrepiada, meu coração acelerado, umas das maiores emoções que senti.
ah, como é bom sentir.
de repente, é chegada a hora, a cortina se abre, está escuro e enquanto toca “os tambores de minas”, bituca é ovacionado. aos poucos a luz revela e como um sol, orixá da música brasileira, um deus em seu trono de ouro, aparece ele, milton nascimento, bituca, a voz de deus.
ele sentado, com a sanfona. que grandioso.
me chama atenção seu figurino, penso imediatamente “um sol”, ele começa cantando “ponta de areia”, a voz embargada de emoção, que lindo e potente é ver um deus emocionado, vivo, feliz.
depois de três músicas, há uma troca de figurino, ronaldo fraga o assina e sinto que é tão potente esse simbolismo. essa troca logo no início. tudo, cada detalhe.
depois fui pesquisar mais sobre o figurino, pois sentia que tinha mais ali, tudo era tão impecável, a moda também é uma maneira de comunicar. e de fato, tinha:
“o manto da apresentação para prestar conta a Deus no dia do juízo final “, obra do sergipano artur bispo do rosário, foi a minha inspiração para a criação do figurino da entidade milton nascimento para o show de encerramento da carreira do mestre nos palcos.
o “manto” do Bituca traz fragmentos da sua carreira e universo bordados num nascer do sol no grande sertão-veredas, e por baixo, um “fardão” para um imortal com os mistérios da noite no sertão.”
definição do ronaldo fraga em seu instagram
só agora ele cumprimenta a plateia extasiada e dedica aquele show e as primeiras músicas ao “grande amor da minha vida elis regina”. que lindo é passar uma vida depois que ela morreu e ainda ser o grande amor de alguém.
isso me fez pensar muito, porque sinto que não importa o tempo que eu viver eu vou ter grandes amores marcados em minha vida também. sinto que os grandes amores ficam pra sempre. não com o pensamento de que não viverei outros, mas que aquelas pessoas são únicas e ocupam um espaço só delas. o espaço vazio permanecerá depois que elas se foram, pois não há substituição, há vida que segue e nos sobra lidar com o que fica. o vazio.
o show segue,
me sinto emocionada, meio tentando entender o que sinto, como sinto tudo aquilo, quase um transe.
eu despertei quando começou “para lennon e mccartney”:
“eu sou da américa do sul
eu sei, vocês não vão saber
mas agora sou cowboy
sou do ouro, eu sou vocês
sou do mundo, sou minas gerais”
eu juro que só em escrever estou arrepiada, mais lágrimas, naquele dia e hoje.
logo depois começa “cais”:
“invento o amor
e sei a dor de me lançar
eu queria ser feliz
invento o mar
invento em mim o sonhador”
olho pro lado, para minha mãe, como se dissesse “mãe, você acredita que estamos vivendo isso?” - ela, com o olhar me respondeu “sim”.
tem momentos que não precisamos de palavras. os olhares que dizem tudo.
eu tenho minhas músicas favoritas do bituca, “nada será como antes” não entrava nessa lista. mas esse ano ela foi meu mantra, uma prece de esperança para os dias difíceis, quando ele começou, eu desmontei.
“que notícias me dão dos amigos?
que notícias me dão de você?
sei que nada será como está, amanhã
resistindo na boca da noite um gosto de sol”
penso que resistindo na boca da noite um gosto de sol é uma das frases mais lindas que já ouvi na música brasileira.
fiquei absolutamente embriagada ao ouvir, era uma sensação de encontro, daqueles que a gente vai não esperando nada e se depara com uma conversa deliciosa, riso frouxo, diferenças abissais, coincidências peculiares e olhares que procuram a companhia e o reconhecimento. geralmente duram só esse instante. é difícil sentar no banco solitário da continuidade. e ainda assim é bonito. as coisas duram o tempo que precisam, gosto de pensar.
mais uma sequência de músicas maravilhosas, lembro de pensar em “cio da terra”, imagina que lindo chico cantando junto, ou na “volver a los 17” a potência de mercedes sosa, em “paula e bebeto” quando ele canta: “qualquer maneira de amor vale à pena”, me lembra da imensidão do amor. de todo amor. acho que zé ibarra é mais que acertado para acompanhar o bituca potencializa e deixa os respiros que bituca precisa belíssimos.
de repente:
ela, a música que consigo me ver no espelho. parece bobagem, mas o reconhecimento de si pode ser difícil, complexo, doloroso, e belo. tem sido tudo isso ultimamente. e “caçador de mim” me lembra, que apesar e por tudo, eu sou essa caçadora de mim. incansável.
"por tanto amor, por tanta emoção
a vida me fez assim
doce ou atroz, manso ou feroz
eu, caçador de mim
preso a canções
entregue a paixões
que nunca tiveram fim
vou me encontrar longe do meu lugar
eu, caçador de mim”
quando começou “coração de estudante”, olho para minha mãe e percebo: essa é a favorita dela, ela canta e se emociona e meu espetáculo nesse momento é perceber sua euforia e emoção que é arrematada com “maria maria” em sequência. estou tão extasiada que fui a primeira entre todas aquelas pessoas a levantar para dançar com bituca, tinha cheiro de despedida. todos vibram, dançam, se emocionam. que espetáculo ver gente feliz.
as cortinas se fecham.
o tradicional “bis” é pedido pela plateia sedenta.
incrível como a gente já espera a segunda chance nos shows, já “sabe” que terá mais.
quem dera a gente tivesse oportunidade de ter mais de outras coisas, pessoas, momentos.
penso nas pessoas que queria ter segunda chance de ver de novo. acho que só ver, de longe mesmo, já seria grande.
para as últimas duas músicas, bituca convida ao palco: liniker. que surpresa maravilhosa. não esperava que aquela noite poderia ser melhor. e foi. sempre fui apaixonada por liniker, e esse ano, vê-la, ouvi-la, senti-la foi um grande marco. senti que só depois que fui no seu show em maio, comecei a colocar o pé pra fora de um fundo do poço terrível.
o trio bituca, liniker e zé ibarra cantam “encontros e despedidas”, lembro de todas as despedidas que passei e lembrei dessa música, principalmente das amigas que hoje moram na austrália. nem todas as despedidas são finais, algumas são só “até breve”, mas são. doem.
quando penso que não há mais espaço para emoções, começa “travessia”, aquela que coroa o final. eu tenho uma playlist denominada “fim”, justamente para aquele momento sofrência pós romance, travessia foi a segunda música que coloquei. é isso, é uma tristeza de um fim mas com a esperança que preciso sentir. ainda é travessia, essa newsletter vem também dessa música. o que sinto hoje vem dela. e o que senti no show foi expandido. travessia toca onde dói. travessia só é.
“quando você foi embora
fez-se noite em meu viver
forte eu sou mas não tem jeito,
hoje eu tenho que chorar”
“ vou seguindo pela vida
me esquecendo de você
eu não quero mais a morte,
tenho muito que viver
vou querer amar de novo
e se não der não vou sofrer”
fim. acabou. duas horas e trinta minutos de show. o tempo voou.
bituca chama todos da equipe pelo nome ao palco, se levanta com toda força que o resta, que GENEROSO, assim, grande.
eu penso, talvez nada mostre mais sabedoria do que o saber se despedir com plenitude. há muita coragem para encarar a última sessão de música. mas para quem é irretocável como bituca, coragem foi detalhe.
agora escrevo e é domingo, treze de novembro, já tenho trinta e um anos e acabei de assistir pela tv o último show da turnê, no mineirão, com quase sessenta mil pessoas. acompanhei emocionada e pude perceber outras nuances que enquanto vivia o show em agosto não consegui. quis escrever para não esquecer. a transição do painel dos gêmeos que compõe a cenografia, a presença incrível do clube da esquina, a emoção de bituca de pertinho, a troca da última música para encontros e despedidas.
ta aí, o tempo nos ajuda até nisso, matura os pensamentos e percepções, aguça os sentidos, adoça os ouvidos e peneira os sentimentos.
só fica o que é primordial.
bituca fica, pra sempre, afinal: sonhos não envelhecem.
que delícia de leitura! Pude sentir a emoção desse show aqui. Sorte da dona Rosa poder te acompanhar nesse sonho! ♥️